quinta-feira, março 08, 2007

Mensagem para a Quaresma 2007

Caminho Quaresmal 2007 da Arquidiocese

A Quaresma acontece sempre como uma graça renovada que o Ano Litúrgico nos oferece. Infelizmente, deixamo-nos possuir pela rotina e a sua incidência na vida dos cristãos e das comunidades começa a ser diminuta.Poderemos restituir-lhe o significado original? Reconheço que a vida moderna coloca muitas condicionantes. Importa, por isso, “impor-se” um programa, exigente e sereno, a nível pessoal e comunitário.1. “Hão-de olhar para aquele que trespassaram” (Jo. 19,37 [Zc 12,10]).O Santo Padre conduz-nos, na sua habitual mensagem da Quaresma, para a redescoberta do essencial do cristianismo. Orienta-o a profecia, recordada por Cristo, e que continua a ser eloquência sublime. Na cruz encontramos o amor oblativo (ágape) de quem só busca o bem do outro assim como o apelo de quem espera uma correspondência (eros). Deus dá tudo e é o Seu amor gratuito que está solicitando uma correspondência.Daí que a Quaresma, na linha da Encíclica de Bento XVI “Deus caritas est” - que deveríamos reler pausadamente, - deveria tornar-se momento duma “experiência renovada do amor de Deus”, oferecido em Cristo, a “dar novamente” ao próximo “sobretudo a quem mais sofre e é necessitado”. Contemplando “aquele que trespassaram”, teremos de “combater qualquer forma de desprezo da vida e de exploração da pessoa e de aliviar os dramas da solidão e do abandono de tantas pessoas”.2. A pressa do quotidiano impede a contemplação do mistério do amor de Deus. A Quaresma, entre outros sentidos, recorda os quarenta dias de Jesus no deserto. Aí dominou a solidão e, através desta, o silêncio retemperador de energias motivado por um encontro consigo e proporcionador duma maior consciência da Missão que o Pai lhe havia confiado. Aí “ouviu”, dum modo sereno e objectivo, os conteúdos dum projecto original e irrepetível; compreendeu, mais responsavelmente, os contornos duma missão ambiciosa porque inspirada pelo cuidado em cumprir, sempre e em toda a parte, a vontade do Pai.O silêncio foi eloquente e a solidão gerou encontro com a missão salvadora que abraçava a humanidade mas iria encontrar-se com muitos mundos e experiências de solidão, sintoma de carências essenciais e de desadaptação nos diversos contextos da vida. Na Sua solidão encontrou-Se com muitos solitários e reconheceu que a vida deve ser interpretada como aventura de solidariedade.A solidão pode permitir a tomada de consciência e permitir uma atitude de verdadeira conversão (Os 2, 85). Na Sagrada Escritura, o deserto aparece como o lugar que permite a revelação de Deus. Moisés encontra-se com Deus no Horeb e no Sinai (Ex 3, 1) e com Elias acontece o mesmo (I Re 19, 4-18).Jesus, para além dos 40 dias de deserto, retira-se para falar com Deus (Mt 1, 35; Lc. 5,16) e com os discípulos realiza idêntica experiência (Lc 9, 10. 18; Mt 6,31; Mc 4, 10), convidando-os a rezar não nas praças públicas mas a afastar-se para se encontrar com o Pai (Mt 6,5).Destas considerações quero retirar três atitudes a vivenciar pelos cristãos e a promover pelas comunidades. 2.1 – Não ter medo da solidão. Ninguém desvaloriza o encontro e o convívio. Sem eles torna-se impossível viver. Penso, porém, ser unânime o reconhecimento da necessidade de fugir ao ruído e palavreado do quotidiano. Muitos atemorizam-se com os momentos de solidão. Estar “só” é uma graça.A solidão, geradora de vontade e encanto de viver, nunca pode ser vazia de conteúdo. Ela proporciona um encontro com o eu, com a Palavra meditada, com a análise serena dos acontecimentos da vida, com a companhia dum bom livro… Pode, também, ser interpretada em comum promovendo um encontro familiar ou com algum amigo que partilha um projecto idêntico de vida. Aqui a palavra, carregada da vida e da ânsia de algo que quero ser, nunca perturbará esta solidão.Sugiro, por isso, uma Quaresma de espaços de deserto onde se deixam as preocupações quotidianas e, com mais ou menos tempo, me encontro comigo ouvindo o silêncio interior. Aconselho às famílias momentos onde se fechem às pressões exteriores e se confrontem com o “eu” familiar repleto de direitos e de obrigações, de causas de alegria e de motivos de tristeza. Também aqui a rotina pode impedir a verdadeira leitura da real vida familiar onde se deixa correr muita coisa que não se quer ver e ouvir.2.2- A solidão deverá encontrar-se com as solidões.A indiferença e um pseudo-respeito pelos outros pode, inconsciente ou conscientemente, provocar um alheamento pela sua vida. Há muitos muros que impedem uma visão de dramas e de existências de pessoas mergulhadas em solidões que tornam a vida infeliz. A pressa não permite ver rostos marcados pelas lágrimas mesmo que as conversas não o digam explicitamente. Nos nossos companheiros de jornada podem existir momentos ou situações repletas de angústia e que teimamos em não querer ver ou porque corremos muito ou porque vivemos desatentos. A solidão é, nesta perspectiva, o estado existencial que domina a vida de muitos conhecidos que não precisamos de procurar. Basta querer conhecer os colegas de trabalho, as pessoas com quem nos cruzamos todos os dias, os vizinhos da mesma rua ou bairro. Convivemos com muita gente; nem sempre nos apercebemos da situação interior que estão a viver.Se olharmos para o mundo das famílias, estamos a entrar num espaço que nem sempre queremos reconhecer que existe. Só que é uma realidade, talvez ao lado da nossa casa ou na lista das famílias conhecidas, a solidão em que muitas vivem quotidianamente. O encontro não acontece, o diálogo é fortuito ou ocasional e de circunstância.Nas solidões, experimentadas ou encontradas nos outros e nas famílias, teremos de recordar que Cristo também a experimentou e foi ao encontro dela. No meio dos seus amigos, na última ceia, esteve só, sabia que Judas o atraiçoaria (Jo 13, 11), que Pedro o negaria (Jo 13, 38), que os discípulos o abandonariam (Mc 14, 27). Encontra-se só no Getsémani (Mc 14, 27) e na cruz vive a mais completa solidão onde até o Pai parece abandoná-Lo (Mc 15,34).2.3 - A solidão exige solidariedade.Nem sempre a palavra solidariedade teve um significado verdadeiramente cristão. Sabemos, até, que terá nascido num contexto e ambiente histórico hostil à Igreja. Hoje, porém, está consagrada como virtude no sentido de dependência mútua e dum identificar-se com os problemas dos outros para, com eles e por eles, encontrar uma solução.A celebração dos 20 anos sobre a publicação da Sollicitudo Rei Socialis [SRS] (30 de Dezembro de 1987) pode sugerir-nos uma releitura desta encíclica onde o pensamento do Papa João Paulo II é verdadeiramente interpelativo. Retiro algumas referências:- A interdependência, das pessoas e das instituições, suscita uma resposta, como atitude moral e social e como “virtude” da solidariedade;- Esta nunca pode ser “um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial” pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes;- Consiste, essencialmente e como exercício constante, numa “determinação firme e perseverante” de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos. Aqui está o núcleo central da redescoberta a fazer: serei, sempre, responsável por todos, partindo do grande princípio da doutrina social da Igreja: os bens da criação são destinados a todos;- Esta responsabilidade foi provocada por causas que impedem o desenvolvimento integral de todas as pessoas, nomeadamente a “avidez do lucro e a sede do poder” que podem e devem ser consideradas como verdadeiras “estruturas de pecado”;- Perante estas é preciso lutar, com o auxílio da graça divina, através duma “atitude diametralmente oposta”, ou seja, “a aplicação em prol do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para ‘perder-se’ em seu benefício em vez de o explorar, e para ‘servi-lo’ em vez de o oprimir para ‘proveito próprio’” (Cf. Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27). Este exercício é sinal e certeza dum reconhecimento de todos como pessoas humanas com dignidade comum. Daí que, como consequência natural, “aqueles que contam mais, dispondo de uma parte maior de bens e de serviços comuns, hão-de sentir-se responsáveis pelos mais fracos e estar disponíveis a compartilhar com eles o que possuem”. Em simultâneo e como atitude de verdadeira corresponsabilidade, “os mais fracos não devem adoptar uma atitude meramente passiva ou destrutiva do tecido social; mas, embora defendendo os seus direitos legítimos, fazer o que lhes compete para o bem de todos”. Trata-se dum jogo de amor onde cada parte arrisca com as capacidades próprias e arrisca dando um contributo sempre imprescindível. Quem tem não pode fechar os olhos e quem necessita nunca se deve refugiar no egoísmo de quem espera uma solução que chega sem o mínimo empenho;- A caridade será sempre o sinal distintivo dos discípulos de Cristo (Cf. Jo 13, 35). A solidariedade, como virtude cristã, encerra muitos “pontos de contacto” com a caridade (“a gratuidade total, o perdão e a reconciliação”) e faz com que o ser humano, numa igualdade de direitos, seja reconhecido “como imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objecto da acção permanente do Espírito Santo”. Nesta exigência da fé, adquirimos uma “consciência da paternidade comum, da fraternidade de todos os homens em Cristo, “filhos no Filho”, e da presença e da acção unificante do Espírito Santo”;- Com esta perspectiva da solidariedade, teremos um “novo critério” para ver e interpretar o mundo em que vivemos. É o modelo da unidade “reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas” a que chamamos “comunhão” e torna-se “a alma” da vocação da Igreja para ser “Sacramento”, ou seja, sinal eficaz dum amor que soluciona muitas questões e dá resposta a muitos dramas.3. Programa Diocesano: Ser Família SolidáriaAo percorrermos este itinerário apontado pelo Saudoso Papa João Paulo II, nos nºs 38-40 da Encíclica SRS, estamos a mergulhar no objectivo primordial do nosso Programa Pastoral. Somos família que se apresenta num testemunho de verdadeira solidariedade. A “Família Solidária” acontece no íntimo dos nossos lares, interpreta-se nos dinamismos das nossas comunidades e compromete-nos na vida toda duma Arquidiocese.Regresso a João Paulo II para sintetizar e explicitar quanto, dum modo particular, deveremos viver nesta Quaresma.“Em virtude do seu peculiar compromisso evangélico, a Igreja sente-se chamada a estar ao lado das multidões pobres, a discernir a justiça das suas solicitações e a contribuir para as satisfazer”. “A solidariedade ajuda-nos a ver o ‘outro’ – pessoa, povo ou nação – não como um instrumento qualquer, de que se explora, a baixo preço, a capacidade de trabalho e a resistência física, para o abandonar quando já não serve; mas sim, como um nosso ‘semelhante’, um ‘auxílio’ (Cf. Gn 2, 18-20), que se há-de tornar participante, como nós, no banquete da vida, para o qual todos os homens são igualmente convidados por Deus”. (nº 39).3.1 Solidariedade, Baptismo e Eucaristia.Regressando ao ponto de partida desta mensagem (“Hão-de olhar para Aquele que trespassaram” [Jo 19, 37]) tornaremos a Quaresma um tempo de contemplação silenciosa do amor de Deus e de luta por um mundo de igualdade através do exercício da solidariedade. Na cruz Jesus assume o sofrimento e a angústia até à morte para nos libertar de todo o tipo de solidão como consequência do pecado. Aí “Ele reúne na unidade os filhos de Deus dispersos” (Jo 11-52) e torna o Seu povo unido num “só rebanho” (Jo 10, 16). O ideal messiânico de toda a história da salvação de um só Deus (Deut 6, 4), um só culto (2 Re 17, 36), um só povo (Is 60, 4), um só coração (Jer 32, 39), encontra a sua plena realização em Cristo. Na cruz e pela cruz o homem passa da solidão à comunhão, “do abandono ao encontro”, do estar só a “ser um só”.No calvário encontramos uma cruz, sinal de tantas cruzes, e o Filho de Deus de coração trespassado donde sai Sangue e Água. A Água lembra o Baptismo – e a Quaresma é tempo baptismal – para, como crentes, sairmos de nós próprios e nos abrirmos à fraternidade universal. O Sangue evoca-nos a Eucaristia que nos atrai “para o acto oblativo de Jesus” para sermos envolvidos na dinâmica da sua doação (Deus caritas est, nº13). O exercício de solidão que convido a fazer deveria consciencializar-nos da originalidade dum cristão baptizado que coloca a Eucaristia no centro da vida para a actualizar em testemunho de auto-doação e partilha de quanto Deus nos concede.3.2 Partilhar na solidariedade: Viver o Contributo e a Renúncia QuaresmalO cristianismo, como experiência de seguimento de Cristo e não mero cumprimento de normas ou determinações, deve descobrir o verdadeiro significado de gestos que nos parecem ultrapassados. Só a rotina e um cumprimento formal permitirão uma tal interpretação. Impõe-se, por isso, entender a exigência do jejum e da abstinência para os colocar na linha da solidariedade activa e efectiva. Pode custar pouco evitar um determinado tipo de coisas. Ser capaz de ver o “nosso” mundo e lutar por uma vida de fraternidade onde com o pouco da partilha podemos dar sentido e razão de ser a muitas vidas, é um modelo a experimentar conscientemente.Neste contexto teremos de compreender e vivenciar a Renúncia Quaresmal e a partilha no Contributo Penitencial. São dois gestos que se integram e tem razão de ser se forem articulados numa penitência de purificação e conversão. Cada um saberá onde trabalhar esta solidariedade activa. Como Pastor da Igreja que peregrina em Braga, depois de ouvir o Conselho Presbiteral, quero apontar as finalidades do Contributo Penitencial da Quaresma de 2007:- Continuaremos a ter presente o Fundo de Solidariedade da Conferência Episcopal Portuguesa e a ajuda para a construção de novos espaços de culto na Arquidiocese;- Como dimensão missionária e depois duma visita à Arquidiocese de Madras-Meliapore, onde D. António Barroso foi Bispo, iremos responder à solicitação efectuada pelo Arcebispo local, como gratidão aos Missionários Portugueses que aí trabalharam, ajudando na construção dum Centro de Formação de Agentes da Pastoral;- Integrados no Programa Pastoral reconheceremos que a família necessita duma habitação digna o que nem sempre acontece nas nossas comunidades paroquiais. Ao mesmo tempo, a dignidade e qualidade da vida humana são condicionadas por determinadas limitações de variadas ordens. Para responder a estas situações a Cáritas Arquidiocesana de Braga constituiu o Banco de Equipamento Médico Hospitalar que pretende colmatar necessidades (canadianas, camas articuladas, cadeiras de rodas) de pessoas de toda a Arquidiocese. Na verdade, as Visitas Pastorais ainda nos oferecem o contacto com “casas” e necessidades de agregados familiares que muita gente ignora e que nos deveriam incomodar.Solicito, por isso, aos movimentos (Conferências Vicentinas, Legião de Maria, Ministros da Comunhão…) que individualizem casos onde faltam elementos essenciais e mínimos para uma vida digna. Ao mesmo tempo, que, em Conselho Pastoral Paroquial, elaborem um esquema de intervenção no sentido de recuperar algumas casas.Com o dinheiro recolhido solucionaremos alguns casos e procuraremos ajudar a criar um ambiente de dignidade. Pensando nestes casos e não esquecendo a nossa Casa Sacerdotal, estamos a demonstrar a solidariedade, sinal duma Comunhão Cristã.Resumindo, daremos dignidade às habitações e, através da Caritas, faremos com que os doentes disponham de meios adequados.ConclusãoO ritmo do ano litúrgico deveria proporcionar aos cristãos um plano de vida para cada momento. A Quaresma é uma oportunidade e graça que pediria que fosse acolhida.Temos um Programa Pastoral muito concreto. “Ser Família Solidária” deveria nortear todas as iniciativas pastorais e os propósitos pessoais.Partindo desta ideia quis referir algumas sugestões. Valem pouco pelos seus conteúdos e podem valer muito se se tornarem “Programa” operativo a nível pessoal e comunitário. - Criar momentos de solidão;- Aperceber-se da solidão de muitos;- Formular gestos de solidariedade permanente;- Concretizar esses gestos numa interpretação renovada do Contributo Penitencial.Serão muitas ideias? Bastaria apaixonar-se por uma e descobrir-se-ia um conjunto inesperado de desafios que nos levam ao coração trespassado da nossa humanidade. O “hão-de ver aquele que trespassaram” é também uma denúncia, uma sentença condenatória dos algozes, que vendo-o já morto ainda lhe atravessaram o lado com uma lança! Os gestos da indiferença mais cruel matam aquele que os pratica porque as vítimas já não os sentem. Mas aí ressoam as palavras: “Tudo quanto fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a Mim que o fizestes” (Mt 25, 40.45), mostrando que nós devemos ver aquele que trespassaram no rosto dos dramas dos seus irmãos, que são todos os homens, o nosso próximo.Com os gestos da solidariedade, da partilha, da entrega de si mesmo ao outro e ao Outro, percorrendo este caminho quaresmal celebraremos a Páscoa do Senhor de coração trespassado e dele brotará a água e o sangue do Amor de Deus e do homem, esperança ainda que crucificada dum futuro melhor para todos. Com todos e cada um dos diocesanos e com todos os que apostam na solidariedade como a virtude cristã dos tempos da globalização e da interdependência quero fazer esta caminhada quaresmal e desde já fazer votos de que o Sol da Páscoa brilhe nos corações trespassados das nossas famílias com a solidariedade efectiva e afectiva do nosso programa pastoral “Família Solidária”.

+ Jorge Ferreira da Costa Ortiga,
Arcebispo Primaz