quinta-feira, março 08, 2007

Mensagem para XXII Jornada Mundial da Juventude

"Que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei" (Jo 13, 34)
Queridos jovens!Por ocasião da XXII Jornada Mundial da Juventude, que será celebrada nas Dioceses no próximo Domingo de Ramos, gostaria de propor à vossa meditação as palavras de Jesus: "que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei" (Jo 13, 34).É possível amar?Cada pessoa sente o desejo de amar e ser amada. Mas como é difícil amar, quantos erros e falências devem verificar-se no amor! Há até quem chegue a duvidar que o amor seja possível. Mas se carências afectivas ou desilusões sentimentais podem levar a pensar que amar é uma utopia, um sonho irrealizável, talvez seja necessário resignar-se? Não! O amor é possível e a finalidade desta mensagem é contribuir para reavivar em cada um de vós, que sois o futuro e a esperança da humanidade, a confiança no amor verdadeiro, fiel e forte; um amor que gera paz e alegria; um amor que une as pessoas, fazendo-as sentir-se livres no respeito recíproco. Deixai então que eu percorra juntamente convosco um itinerário, em três momentos, na "descoberta" do amor.Deus, fonte do amorO primeiro momento refere-se à fonte do amor verdadeiro, que é única: é Deus. São João ressalta bem este aspecto ao afirmar que "Deus é amor" (1 Jo 4, 8.16); agora ele não quer dizer apenas que Deus nos ama, mas que o próprio ser de Deus é amor. Estamos aqui diante da revelação mais luminosa da fonte do amor que é o mistério trinitário: em Deus, uno e trino, há um intercâmbio eterno de amor entre as pessoas do Pai e do Filho, e este amor não é uma energia ou um sentimento, mas uma pessoa, é o Espírito Santo.A Cruz de Cristo revela plenamente o amor de DeusComo se nos manifesta o Deus-Amor? Estamos no segundo momento do nosso itinerário. Mesmo se já na criação são claros os sinais do amor divino, a revelação total do mistério íntimo de Deus verificou-se com a Encarnação, quando o próprio Deus se fez homem. Em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, conhecemos o amor em todo o seu alcance. De facto, "a verdadeira novidade do Novo Testamento escrevi na Encíclica Deus caritas est não consiste em ideias novas, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos um realismo extraordinário" (n. 12). A manifestação do amor divino é total e perfeita na Cruz, onde, como afirma São Paulo, "é assim que Deus demonstra o seu amor para connosco: quando ainda éramos pecadores é que Cristo morreu por nós" (Rm 5, 8). Portanto, cada um de nós pode dizer sem receio de errar: "Cristo amou-me e entregou-se a Si mesmo por mim" (cf. Ef 5, 2). Redimida pelo seu sangue, vida humana alguma é inútil ou de pouco valor, porque todos somos amados pessoalmente por Ele com um amor apaixonado e fiel, um amor sem limites. A Cruz, loucura para o mundo, escândalo para muitos crentes, é ao contrário "sabedoria de Deus" para todos os que se deixam tocar profundamente no seu ser, "o que é considerado loucura de Deus é mais sábio que os homens, e o que é debilidade de Deus é mais forte que os homens" (cf. 1 Cor 1, 24-25). Aliás, o Crucificado, que depois da ressurreição traz para sempre os sinais da própria paixão, ressalta as "falsificações" e as mentiras sobre Deus, que se disfarçam com a violência, a vingança e a exclusão. Cristo é o Cordeiro de Deus, que assume os pecados do mundo e desenraiza o ódio do coração do homem. Eis a sua verdadeira "revolução": o amor.Amar o próximo como Cristo nos amaChegamos agora ao terceiro momento da nossa reflexão. Na cruz Cristo grita: "Tenho sede" (Jo 19, 28): revela assim uma sede ardente de amar e de ser amado por todos nós. Unicamente se conseguirmos compreender a profundeza e a intensidade deste mistério, nos apercebemos da necessidade e da urgência de o amar por nossa vez "como" Ele nos amou. Isto exige o compromisso de dar também, se for necessário, a própria vida pelos irmãos amparados pelo Seu amor. Já no Antigo Testamento Deus dissera: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Lv 19, 18), mas a novidade de Cristo consiste no facto de que amar como Ele nos amou significa amar todos, sem distinções, também os inimigos, "até ao fim" (cf. Jo 13, 1).Testemunhas do amor de CristoGostaria agora de me deter sobre três âmbitos da vida quotidiana onde vós, queridos jovens, sois particularmente chamados a manifestar o amor de Deus. O primeiro é a Igreja que é a nossa família espiritual, composta por todos os discípulos de Cristo. Recordando-nos das suas palavras: "Por isso é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros" (Jo 13, 35), alimentai, com o vosso entusiasmo e com a vossa caridade, as actividades das paróquias, das comunidades, dos movimentos eclesiais e dos grupos juvenis aos quais pertenceis. Sede solícitos em procurar o bem do próximo, fiéis aos compromissos assumidos. Não hesiteis em renunciar com alegria a alguns dos vossos divertimentos, aceitai de bom grado os sacrifícios necessários, testemunhai o vosso amor fiel a Jesus anunciando o seu Evangelho especialmente entre os vossos coetâneos.Preparar-se para o futuroO segundo âmbito, no qual sois chamados a expressar o amor e a crescer nele, é a vossa preparação para o futuro que vos espera. Se sois noivos, Deus tem um projecto de amor para o vosso futuro de casal e de família e por conseguinte é essencial que o descubrais com a ajuda da Igreja, livres do preconceito difundido de que o cristianismo, com os seus mandamentos e as suas proibições, constitua obstáculos à alegria do amor e impeça em particular de viver plenamente aquela felicidade que o homem e a mulher procuram no seu amor recíproco. O amor do homem e da mulher está na origem da família humana e o casal formado por um homem e por uma mulher tem o seu fundamento no desígnio originário de Deus (cf. Gn 2, 18-25). Aprender a amar-se como casal é um caminho maravilhoso, que contudo exige um tirocínio empenhativo. O período do noivado, fundamental para construir o casal, é um tempo de expectativa e de preparação, que deve ser vivido na castidade dos gestos e das palavras. Isto permite amadurecer no amor, na solicitude e nas atenções ao outro; ajuda a exercer o domínio de si, a desenvolver o respeito do outro, características do verdadeiro amor que não procura em primeiro lugar a própria satisfação nem o seu bem-estar. Na oração comum pedi ao Senhor que guarde e incremente o vosso amor e o purifique de qualquer egoísmo. Não hesiteis em responder generosamente à chamada do Senhor, porque o matrimónio cristão é uma verdadeira e própria vocação na Igreja. De igual modo, queridos jovens e queridas jovens, estai preparados para dizer "sim", se Deus vos chamar a segui-lo pelo caminho do sacerdócio ministerial ou da vida consagrada. O vosso exemplo servirá de encorajamento para muitos outros vossos coetâneos, que estão em busca da verdadeira felicidade.Crescer no amor todos os diasO terceiro âmbito do compromisso que o amor exige é o da vida quotidiana com as suas numerosas relações. Refiro-me sobretudo à família, à escola, ao trabalho e ao tempo livre. Queridos jovens, cultivai os vossos talentos não só para conquistar uma posição social, mas também para ajudar os outros "a crescer". Desenvolvei as vossas capacidades, não só para vos tornardes mais "competitivos" e "produtivos", mas para serdes "testemunhas da caridade". Juntai à formação profissional o esforço de adquirir conhecimentos religiosos úteis para poder desempenhar a vossa missão de modo responsável. Sobretudo, convido-vos a aprofundar a doutrina social da Igreja, para que a vossa acção no mundo seja inspirada e iluminada pelos seus princípios. O Espírito Santo faça com que sejais inovadores na caridade, perseverantes nos compromissos que assumis, e audaciosos nas vossas iniciativas, a fim de que possais oferecer o vosso contributo para a edificação da "civilização do amor". O horizonte do amor é verdadeiramente infinito: é o mundo inteiro!"Ousar o amor" seguindo o exemplo dos santosQueridos jovens, gostaria de vos convidar a "ousar o amor", isto é, a não desejar nada para a vossa vida que seja inferior a um amor forte e belo, capaz de tornar toda a existência uma jubilosa realização da doação de vós próprios a Deus e aos irmãos, à imitação d'Aquele que mediante o amor venceu para sempre o ódio e a morte (cf. Ap 5, 13). O amor é a única força capaz de mudar o coração do homem e a humanidade inteira, tornando proveitosas as relações entre homens e mulheres, entre ricos e pobres, entre culturas e civilizações. Disto dá testemunho a vida dos Santos que, verdadeiros amigos de Deus, são o canal e o reflexo deste amor originário. Comprometei-vos a conhecê-los melhor, entregai-vos à sua intercessão, procurai viver como eles. Limito-me a citar Madre Teresa que, para se apressar a responder ao grito de Cristo "Tenho sede", grito que a comoveu profundamente, começou a recolher os moribundos nas estradas de Calcutá, na Índia. A partir de então, o único desejo da sua vida tornou-se o de extinguir a sede de amor de Jesus não com palavras, mas com gestos concretos, reconhecendo o seu rosto desfigurado, sequioso de amor, no rosto dos mais pobres. A Beata Teresa pôs em prática o ensinamento do Senhor: "Sempre que fizerdes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes" (cf. Mt 25, 40). E a mensagem desta humilde testemunha do amor divino difundiu-se em todo o mundo.O segredo do amorQueridos amigos, a cada um de nós é concedido alcançar este grau de amor, mas unicamente se recorrermos ao indispensável apoio da Graça divina. Só a ajuda do Senhor nos permite, de facto, evitar a resignação diante da grandiosidade da tarefa a ser desenvolvida e infunde-nos a coragem de realizar quanto é humanamente impensável. Sobretudo a Eucaristia é a grande escola do amor. Quando se participa regularmente e com devoção na Santa Missa, quando se transcorrem na companhia de Jesus Eucarístico pausas prolongadas de adoração é mais fácil compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do seu amor que ultrapassa todo o conhecimento (cf. Ef 3, 17-18). Partilhando o Pão eucarístico com os irmãos da comunidade eclesial sentimo-nos depois estimulados a traduzir "depressa", como fez a Virgem com Isabel, o amor de Cristo em generoso serviço aos irmãos.Rumo ao encontro de SidneyA este propósito é iluminadora a exortação do apóstolo João: "Meus filhinhos, não amemos nem com palavras nem com a boca, mas com as obras e com a verdade. Por isto conheceremos que somos da verdade" (1 Jo 3, 18-19). Queridos jovens, é com este espírito que vos convido a viver a próxima Jornada Mundial da Juventude juntamente com os vossos Bispos nas vossas respectivas Dioceses. Ela representará uma etapa importante rumo ao encontro de Sidney, cujo tema será: "Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas" (Act 1, 8). Maria, Mãe de Cristo e da Igreja, ajudar-vos-á a fazer ressoar em toda a parte o grito que mudou o mundo: "Deus é amor!". Acompanho-vos com a oração e abençoo-vos de coração.

BENEDICTUS PP. XVI

Mensagem do Santo Padre para a Quaresma de 2007

«Hão-de olhar para Aquele que trespassaram» (Jo 19, 37)
Queridos irmãos e irmãs!«Hão-de olhar para Aquele que trespassaram» (Jo 19, 37).
Este é o tema bíblico que guia este ano a nossa reflexão quaresmal. A Quaresma é tempo propício para aprender a deter-se com Maria e João, o discípulo predilecto, ao lado d’Aquele que, na Cruz, cumpre pela humanidade inteira o sacrifício da sua vida (cf. Jo 19, 25). Portanto, dirijamos o nosso olhar com participação mais viva, neste tempo de penitência e de oração, para Cristo crucificado que, morrendo no Calvário, nos revelou plenamente o amor de Deus. Detive-me sobre o tema do amor na Encíclica Deus caritas est, pondo em realce as suas duas formas fundamentais: o agape e o eros.O amor de Deus: agape e erosA palavra agape, muitas vezes presente no Novo Testamento, indica o amor oblativo de quem procura exclusivamente o bem do próximo; a palavra eros denota, ao contrário, o amor de quem deseja possuir o que lhe falta e anseia pela união com o amado. O amor com o qual Deus nos circunda é sem dúvida agape. De facto, pode o homem dar a Deus algo de bom que Ele já não possua? Tudo o que a criatura humana é e possui é dom divino: é portanto a criatura que tem necessidade de Deus em tudo. Mas o amor de Deus é também eros. No Antigo Testamento o Criador do universo mostra para com o povo que escolheu uma predilecção que transcende qualquer motivação humana. O profeta Oseias expressa esta paixão divina com imagens audazes, como a do amor de um homem por uma mulher adúltera (cf. 3, 1-3); Ezequiel, por seu lado, falando do relacionamento de Deus com o povo de Israel, não receia utilizar uma linguagem fervorosa e apaixonada (cf. 16, 1-22). Estes textos bíblicos indicam que o eros faz parte do próprio coração de Deus: o Omnipotente aguarda o «sim» das suas criaturas como um jovem esposo o da sua esposa. Infelizmente desde as suas origens a humanidade, seduzida pelas mentiras do Maligno, fechou-se ao amor de Deus, na ilusão de uma impossível auto-suficiência (cf. Gn 3, 1-7). Fechando-se em si mesmo, Adão afastou-se daquela fonte de vida que é o próprio Deus, e tornou-se o primeiro daqueles «que, pelo temor da morte, estavam toda a vida sujeitos à escravidão» (Hb 2, 15). Deus, contudo, não se deu por vencido, aliás o «não» do homem foi como que o estímulo decisivo que o levou a manifestar o seu amor em toda a sua força redentora.A Cruz revela a plenitude do amor de DeusÉ no mistério da Cruz que se revela plenamente o poder incontível da misericórdia do Pai celeste. Para reconquistar o amor da sua criatura, Ele aceitou pagar um preço elevadíssimo: o sangue do seu Filho Unigénito. A morte, que para o primeiro Adão era sinal extremo de solidão e de incapacidade, transformou-se assim no acto supremo de amor e de liberdade do novo Adão. Pode-se então afirmar, com São Máximo, o Confessor, que Cristo «morreu, se assim se pode dizer, divinamente, porque morreu livremente» (Ambigua, 91, 1956). Na Cruz manifesta-se o eros de Deus por nós. Eros é de facto – como se expressa o Pseudo Dionísio – aquela «força que não permite que o amante permaneça em si mesmo, mas o estimula a unir-se ao amado» (De divinis nominibus, IV, 13: PG 3, 712). Qual «eros mais insensato» (N. Cabasilas, Vita in Cristo, 648) do que aquele que levou o Filho de Deus a unir-se a nós até ao ponto de sofrer como próprias as consequências dos nossos delitos?«Aquele que trespassaram» Queridos irmãos e irmãs, olhemos para Cristo trespassado na Cruz! É Ele a revelação mais perturbadora do amor de Deus, um amor em que eros e agape, longe de se contraporem, se iluminam reciprocamente. Na Cruz é o próprio Deus que mendiga o amor da sua criatura: Ele tem sede do amor de cada um de nós. O apóstolo Tomé reconheceu Jesus como «Senhor e Deus» quando colocou o dedo na ferida do seu lado. Não surpreende que, entre os santos, muitos tenham encontrado no Coração de Jesus a expressão mais comovedora deste mistério de amor. Poder-se-ia até dizer que a revelação do eros de Deus ao homem é, na realidade, a expressão suprema do seu agape. Na verdade, só o amor no qual se unem o dom gratuito de si e o desejo apaixonado de reciprocidade infunde um enlevo que torna leves os sacrifícios mais pesados. Jesus disse: «E Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim» (Jo 12, 32). A resposta que o Senhor deseja ardentemente de nós é antes de tudo que acolhamos o seu amor e nos deixemos atrair por Ele. Mas aceitar o seu amor não é suficiente. É preciso corresponder a este amor e comprometer-se depois a transmiti-lo aos outros: Cristo «atrai-me para si» para se unir comigo, para que eu aprenda a amar os irmãos com o seu mesmo amor.Sangue e água«Hão-de olhar para Aquele que trespassaram». Olhemos com confiança para o lado trespassado de Jesus, do qual brotam «sangue e água» (Jo 19, 34)! Os Padres da Igreja consideraram estes elementos como símbolos dos sacramentos do Baptismo e da Eucaristia. Com a água do Baptismo, graças à acção do Espírito Santo, abre-se para nós a intimidade do amor trinitário. No caminho quaresmal, recordando o nosso Baptismo, somos exortados a sair de nós próprios e a abrir-nos, num abandono confiante, ao abraço misericordioso do Pai (cf. São João Crisóstomo, Catechesi, 3, 14 ss.). O sangue, símbolo do amor do Bom Pastor, flui em nós especialmente no mistério eucarístico: «A Eucaristia atrai-nos para o acto oblativo de Jesus... somos envolvidos na dinâmica da sua doação» (Enc. Deus caritas est, 13). Vivamos então a Quaresma como um tempo «eucarístico», no qual, acolhendo o amor de Jesus, aprendemos a difundi-lo à nossa volta com todos os gestos e palavras. Contemplar «Aquele que trespassaram» estimular-nos-á desta forma a abrir o coração aos outros reconhecendo as feridas provocadas à dignidade do ser humano; impulsionar-nos-á, sobretudo, a combater qualquer forma de desprezo da vida e de exploração da pessoa e a aliviar os dramas da solidão e do abandono de tantas pessoas. A Quaresma seja para cada cristão uma experiência renovada do amor de Deus que nos foi dado em Cristo, amor que todos os dias devemos, por nossa vez, «dar novamente» ao próximo, sobretudo a quem mais sofre e é necessitado. Só assim poderemos participar plenamente da alegria da Páscoa. Maria, a Mãe do Belo Amor, nos guie neste itinerário quaresmal, caminho de conversão autêntica ao amor de Cristo. Desejo a vós, queridos irmãos e irmãs, um caminho quaresmal proveitoso, enquanto com afecto envio a todos uma especial Bênção Apostólica.Vaticano.

BENEDICTUS PP. XVI

Mensagem para a Quaresma 2007

Caminho Quaresmal 2007 da Arquidiocese

A Quaresma acontece sempre como uma graça renovada que o Ano Litúrgico nos oferece. Infelizmente, deixamo-nos possuir pela rotina e a sua incidência na vida dos cristãos e das comunidades começa a ser diminuta.Poderemos restituir-lhe o significado original? Reconheço que a vida moderna coloca muitas condicionantes. Importa, por isso, “impor-se” um programa, exigente e sereno, a nível pessoal e comunitário.1. “Hão-de olhar para aquele que trespassaram” (Jo. 19,37 [Zc 12,10]).O Santo Padre conduz-nos, na sua habitual mensagem da Quaresma, para a redescoberta do essencial do cristianismo. Orienta-o a profecia, recordada por Cristo, e que continua a ser eloquência sublime. Na cruz encontramos o amor oblativo (ágape) de quem só busca o bem do outro assim como o apelo de quem espera uma correspondência (eros). Deus dá tudo e é o Seu amor gratuito que está solicitando uma correspondência.Daí que a Quaresma, na linha da Encíclica de Bento XVI “Deus caritas est” - que deveríamos reler pausadamente, - deveria tornar-se momento duma “experiência renovada do amor de Deus”, oferecido em Cristo, a “dar novamente” ao próximo “sobretudo a quem mais sofre e é necessitado”. Contemplando “aquele que trespassaram”, teremos de “combater qualquer forma de desprezo da vida e de exploração da pessoa e de aliviar os dramas da solidão e do abandono de tantas pessoas”.2. A pressa do quotidiano impede a contemplação do mistério do amor de Deus. A Quaresma, entre outros sentidos, recorda os quarenta dias de Jesus no deserto. Aí dominou a solidão e, através desta, o silêncio retemperador de energias motivado por um encontro consigo e proporcionador duma maior consciência da Missão que o Pai lhe havia confiado. Aí “ouviu”, dum modo sereno e objectivo, os conteúdos dum projecto original e irrepetível; compreendeu, mais responsavelmente, os contornos duma missão ambiciosa porque inspirada pelo cuidado em cumprir, sempre e em toda a parte, a vontade do Pai.O silêncio foi eloquente e a solidão gerou encontro com a missão salvadora que abraçava a humanidade mas iria encontrar-se com muitos mundos e experiências de solidão, sintoma de carências essenciais e de desadaptação nos diversos contextos da vida. Na Sua solidão encontrou-Se com muitos solitários e reconheceu que a vida deve ser interpretada como aventura de solidariedade.A solidão pode permitir a tomada de consciência e permitir uma atitude de verdadeira conversão (Os 2, 85). Na Sagrada Escritura, o deserto aparece como o lugar que permite a revelação de Deus. Moisés encontra-se com Deus no Horeb e no Sinai (Ex 3, 1) e com Elias acontece o mesmo (I Re 19, 4-18).Jesus, para além dos 40 dias de deserto, retira-se para falar com Deus (Mt 1, 35; Lc. 5,16) e com os discípulos realiza idêntica experiência (Lc 9, 10. 18; Mt 6,31; Mc 4, 10), convidando-os a rezar não nas praças públicas mas a afastar-se para se encontrar com o Pai (Mt 6,5).Destas considerações quero retirar três atitudes a vivenciar pelos cristãos e a promover pelas comunidades. 2.1 – Não ter medo da solidão. Ninguém desvaloriza o encontro e o convívio. Sem eles torna-se impossível viver. Penso, porém, ser unânime o reconhecimento da necessidade de fugir ao ruído e palavreado do quotidiano. Muitos atemorizam-se com os momentos de solidão. Estar “só” é uma graça.A solidão, geradora de vontade e encanto de viver, nunca pode ser vazia de conteúdo. Ela proporciona um encontro com o eu, com a Palavra meditada, com a análise serena dos acontecimentos da vida, com a companhia dum bom livro… Pode, também, ser interpretada em comum promovendo um encontro familiar ou com algum amigo que partilha um projecto idêntico de vida. Aqui a palavra, carregada da vida e da ânsia de algo que quero ser, nunca perturbará esta solidão.Sugiro, por isso, uma Quaresma de espaços de deserto onde se deixam as preocupações quotidianas e, com mais ou menos tempo, me encontro comigo ouvindo o silêncio interior. Aconselho às famílias momentos onde se fechem às pressões exteriores e se confrontem com o “eu” familiar repleto de direitos e de obrigações, de causas de alegria e de motivos de tristeza. Também aqui a rotina pode impedir a verdadeira leitura da real vida familiar onde se deixa correr muita coisa que não se quer ver e ouvir.2.2- A solidão deverá encontrar-se com as solidões.A indiferença e um pseudo-respeito pelos outros pode, inconsciente ou conscientemente, provocar um alheamento pela sua vida. Há muitos muros que impedem uma visão de dramas e de existências de pessoas mergulhadas em solidões que tornam a vida infeliz. A pressa não permite ver rostos marcados pelas lágrimas mesmo que as conversas não o digam explicitamente. Nos nossos companheiros de jornada podem existir momentos ou situações repletas de angústia e que teimamos em não querer ver ou porque corremos muito ou porque vivemos desatentos. A solidão é, nesta perspectiva, o estado existencial que domina a vida de muitos conhecidos que não precisamos de procurar. Basta querer conhecer os colegas de trabalho, as pessoas com quem nos cruzamos todos os dias, os vizinhos da mesma rua ou bairro. Convivemos com muita gente; nem sempre nos apercebemos da situação interior que estão a viver.Se olharmos para o mundo das famílias, estamos a entrar num espaço que nem sempre queremos reconhecer que existe. Só que é uma realidade, talvez ao lado da nossa casa ou na lista das famílias conhecidas, a solidão em que muitas vivem quotidianamente. O encontro não acontece, o diálogo é fortuito ou ocasional e de circunstância.Nas solidões, experimentadas ou encontradas nos outros e nas famílias, teremos de recordar que Cristo também a experimentou e foi ao encontro dela. No meio dos seus amigos, na última ceia, esteve só, sabia que Judas o atraiçoaria (Jo 13, 11), que Pedro o negaria (Jo 13, 38), que os discípulos o abandonariam (Mc 14, 27). Encontra-se só no Getsémani (Mc 14, 27) e na cruz vive a mais completa solidão onde até o Pai parece abandoná-Lo (Mc 15,34).2.3 - A solidão exige solidariedade.Nem sempre a palavra solidariedade teve um significado verdadeiramente cristão. Sabemos, até, que terá nascido num contexto e ambiente histórico hostil à Igreja. Hoje, porém, está consagrada como virtude no sentido de dependência mútua e dum identificar-se com os problemas dos outros para, com eles e por eles, encontrar uma solução.A celebração dos 20 anos sobre a publicação da Sollicitudo Rei Socialis [SRS] (30 de Dezembro de 1987) pode sugerir-nos uma releitura desta encíclica onde o pensamento do Papa João Paulo II é verdadeiramente interpelativo. Retiro algumas referências:- A interdependência, das pessoas e das instituições, suscita uma resposta, como atitude moral e social e como “virtude” da solidariedade;- Esta nunca pode ser “um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial” pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes;- Consiste, essencialmente e como exercício constante, numa “determinação firme e perseverante” de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos. Aqui está o núcleo central da redescoberta a fazer: serei, sempre, responsável por todos, partindo do grande princípio da doutrina social da Igreja: os bens da criação são destinados a todos;- Esta responsabilidade foi provocada por causas que impedem o desenvolvimento integral de todas as pessoas, nomeadamente a “avidez do lucro e a sede do poder” que podem e devem ser consideradas como verdadeiras “estruturas de pecado”;- Perante estas é preciso lutar, com o auxílio da graça divina, através duma “atitude diametralmente oposta”, ou seja, “a aplicação em prol do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para ‘perder-se’ em seu benefício em vez de o explorar, e para ‘servi-lo’ em vez de o oprimir para ‘proveito próprio’” (Cf. Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27). Este exercício é sinal e certeza dum reconhecimento de todos como pessoas humanas com dignidade comum. Daí que, como consequência natural, “aqueles que contam mais, dispondo de uma parte maior de bens e de serviços comuns, hão-de sentir-se responsáveis pelos mais fracos e estar disponíveis a compartilhar com eles o que possuem”. Em simultâneo e como atitude de verdadeira corresponsabilidade, “os mais fracos não devem adoptar uma atitude meramente passiva ou destrutiva do tecido social; mas, embora defendendo os seus direitos legítimos, fazer o que lhes compete para o bem de todos”. Trata-se dum jogo de amor onde cada parte arrisca com as capacidades próprias e arrisca dando um contributo sempre imprescindível. Quem tem não pode fechar os olhos e quem necessita nunca se deve refugiar no egoísmo de quem espera uma solução que chega sem o mínimo empenho;- A caridade será sempre o sinal distintivo dos discípulos de Cristo (Cf. Jo 13, 35). A solidariedade, como virtude cristã, encerra muitos “pontos de contacto” com a caridade (“a gratuidade total, o perdão e a reconciliação”) e faz com que o ser humano, numa igualdade de direitos, seja reconhecido “como imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objecto da acção permanente do Espírito Santo”. Nesta exigência da fé, adquirimos uma “consciência da paternidade comum, da fraternidade de todos os homens em Cristo, “filhos no Filho”, e da presença e da acção unificante do Espírito Santo”;- Com esta perspectiva da solidariedade, teremos um “novo critério” para ver e interpretar o mundo em que vivemos. É o modelo da unidade “reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas” a que chamamos “comunhão” e torna-se “a alma” da vocação da Igreja para ser “Sacramento”, ou seja, sinal eficaz dum amor que soluciona muitas questões e dá resposta a muitos dramas.3. Programa Diocesano: Ser Família SolidáriaAo percorrermos este itinerário apontado pelo Saudoso Papa João Paulo II, nos nºs 38-40 da Encíclica SRS, estamos a mergulhar no objectivo primordial do nosso Programa Pastoral. Somos família que se apresenta num testemunho de verdadeira solidariedade. A “Família Solidária” acontece no íntimo dos nossos lares, interpreta-se nos dinamismos das nossas comunidades e compromete-nos na vida toda duma Arquidiocese.Regresso a João Paulo II para sintetizar e explicitar quanto, dum modo particular, deveremos viver nesta Quaresma.“Em virtude do seu peculiar compromisso evangélico, a Igreja sente-se chamada a estar ao lado das multidões pobres, a discernir a justiça das suas solicitações e a contribuir para as satisfazer”. “A solidariedade ajuda-nos a ver o ‘outro’ – pessoa, povo ou nação – não como um instrumento qualquer, de que se explora, a baixo preço, a capacidade de trabalho e a resistência física, para o abandonar quando já não serve; mas sim, como um nosso ‘semelhante’, um ‘auxílio’ (Cf. Gn 2, 18-20), que se há-de tornar participante, como nós, no banquete da vida, para o qual todos os homens são igualmente convidados por Deus”. (nº 39).3.1 Solidariedade, Baptismo e Eucaristia.Regressando ao ponto de partida desta mensagem (“Hão-de olhar para Aquele que trespassaram” [Jo 19, 37]) tornaremos a Quaresma um tempo de contemplação silenciosa do amor de Deus e de luta por um mundo de igualdade através do exercício da solidariedade. Na cruz Jesus assume o sofrimento e a angústia até à morte para nos libertar de todo o tipo de solidão como consequência do pecado. Aí “Ele reúne na unidade os filhos de Deus dispersos” (Jo 11-52) e torna o Seu povo unido num “só rebanho” (Jo 10, 16). O ideal messiânico de toda a história da salvação de um só Deus (Deut 6, 4), um só culto (2 Re 17, 36), um só povo (Is 60, 4), um só coração (Jer 32, 39), encontra a sua plena realização em Cristo. Na cruz e pela cruz o homem passa da solidão à comunhão, “do abandono ao encontro”, do estar só a “ser um só”.No calvário encontramos uma cruz, sinal de tantas cruzes, e o Filho de Deus de coração trespassado donde sai Sangue e Água. A Água lembra o Baptismo – e a Quaresma é tempo baptismal – para, como crentes, sairmos de nós próprios e nos abrirmos à fraternidade universal. O Sangue evoca-nos a Eucaristia que nos atrai “para o acto oblativo de Jesus” para sermos envolvidos na dinâmica da sua doação (Deus caritas est, nº13). O exercício de solidão que convido a fazer deveria consciencializar-nos da originalidade dum cristão baptizado que coloca a Eucaristia no centro da vida para a actualizar em testemunho de auto-doação e partilha de quanto Deus nos concede.3.2 Partilhar na solidariedade: Viver o Contributo e a Renúncia QuaresmalO cristianismo, como experiência de seguimento de Cristo e não mero cumprimento de normas ou determinações, deve descobrir o verdadeiro significado de gestos que nos parecem ultrapassados. Só a rotina e um cumprimento formal permitirão uma tal interpretação. Impõe-se, por isso, entender a exigência do jejum e da abstinência para os colocar na linha da solidariedade activa e efectiva. Pode custar pouco evitar um determinado tipo de coisas. Ser capaz de ver o “nosso” mundo e lutar por uma vida de fraternidade onde com o pouco da partilha podemos dar sentido e razão de ser a muitas vidas, é um modelo a experimentar conscientemente.Neste contexto teremos de compreender e vivenciar a Renúncia Quaresmal e a partilha no Contributo Penitencial. São dois gestos que se integram e tem razão de ser se forem articulados numa penitência de purificação e conversão. Cada um saberá onde trabalhar esta solidariedade activa. Como Pastor da Igreja que peregrina em Braga, depois de ouvir o Conselho Presbiteral, quero apontar as finalidades do Contributo Penitencial da Quaresma de 2007:- Continuaremos a ter presente o Fundo de Solidariedade da Conferência Episcopal Portuguesa e a ajuda para a construção de novos espaços de culto na Arquidiocese;- Como dimensão missionária e depois duma visita à Arquidiocese de Madras-Meliapore, onde D. António Barroso foi Bispo, iremos responder à solicitação efectuada pelo Arcebispo local, como gratidão aos Missionários Portugueses que aí trabalharam, ajudando na construção dum Centro de Formação de Agentes da Pastoral;- Integrados no Programa Pastoral reconheceremos que a família necessita duma habitação digna o que nem sempre acontece nas nossas comunidades paroquiais. Ao mesmo tempo, a dignidade e qualidade da vida humana são condicionadas por determinadas limitações de variadas ordens. Para responder a estas situações a Cáritas Arquidiocesana de Braga constituiu o Banco de Equipamento Médico Hospitalar que pretende colmatar necessidades (canadianas, camas articuladas, cadeiras de rodas) de pessoas de toda a Arquidiocese. Na verdade, as Visitas Pastorais ainda nos oferecem o contacto com “casas” e necessidades de agregados familiares que muita gente ignora e que nos deveriam incomodar.Solicito, por isso, aos movimentos (Conferências Vicentinas, Legião de Maria, Ministros da Comunhão…) que individualizem casos onde faltam elementos essenciais e mínimos para uma vida digna. Ao mesmo tempo, que, em Conselho Pastoral Paroquial, elaborem um esquema de intervenção no sentido de recuperar algumas casas.Com o dinheiro recolhido solucionaremos alguns casos e procuraremos ajudar a criar um ambiente de dignidade. Pensando nestes casos e não esquecendo a nossa Casa Sacerdotal, estamos a demonstrar a solidariedade, sinal duma Comunhão Cristã.Resumindo, daremos dignidade às habitações e, através da Caritas, faremos com que os doentes disponham de meios adequados.ConclusãoO ritmo do ano litúrgico deveria proporcionar aos cristãos um plano de vida para cada momento. A Quaresma é uma oportunidade e graça que pediria que fosse acolhida.Temos um Programa Pastoral muito concreto. “Ser Família Solidária” deveria nortear todas as iniciativas pastorais e os propósitos pessoais.Partindo desta ideia quis referir algumas sugestões. Valem pouco pelos seus conteúdos e podem valer muito se se tornarem “Programa” operativo a nível pessoal e comunitário. - Criar momentos de solidão;- Aperceber-se da solidão de muitos;- Formular gestos de solidariedade permanente;- Concretizar esses gestos numa interpretação renovada do Contributo Penitencial.Serão muitas ideias? Bastaria apaixonar-se por uma e descobrir-se-ia um conjunto inesperado de desafios que nos levam ao coração trespassado da nossa humanidade. O “hão-de ver aquele que trespassaram” é também uma denúncia, uma sentença condenatória dos algozes, que vendo-o já morto ainda lhe atravessaram o lado com uma lança! Os gestos da indiferença mais cruel matam aquele que os pratica porque as vítimas já não os sentem. Mas aí ressoam as palavras: “Tudo quanto fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a Mim que o fizestes” (Mt 25, 40.45), mostrando que nós devemos ver aquele que trespassaram no rosto dos dramas dos seus irmãos, que são todos os homens, o nosso próximo.Com os gestos da solidariedade, da partilha, da entrega de si mesmo ao outro e ao Outro, percorrendo este caminho quaresmal celebraremos a Páscoa do Senhor de coração trespassado e dele brotará a água e o sangue do Amor de Deus e do homem, esperança ainda que crucificada dum futuro melhor para todos. Com todos e cada um dos diocesanos e com todos os que apostam na solidariedade como a virtude cristã dos tempos da globalização e da interdependência quero fazer esta caminhada quaresmal e desde já fazer votos de que o Sol da Páscoa brilhe nos corações trespassados das nossas famílias com a solidariedade efectiva e afectiva do nosso programa pastoral “Família Solidária”.

+ Jorge Ferreira da Costa Ortiga,
Arcebispo Primaz